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Marisa Arraes

a imagem como pensamento


“A visão depois do sermão”, Paul Gauguin, 1888


Em Janela da Alma, Espelho do Mundo, Marilena Chauí percorre um caminho etimológico que demonstra como a visão é um sentido fundamental em nossa construção de significado. É um ensaio que percorre um caminho conceitual acerca da visão. Segundo Chauí, é o sentido que possibilitou uma organização intelectual do ser humano.

Isso se dá através da ideia de “ver”. Do grego, “Eidô — ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber.” Continuando o percurso conceitual da autora, aquele que vê, vê e sabe o eidós, ou seja, conhece o objeto como ele é, conhece “a ideia”. (CHAUÍ) Temos aqui a ligação entre a visão e o conhecimento do mundo, a elaboração do pensamento através desse sentido.

Sendo a visão a base fundadora de nossa percepção do mundo e, portanto, do conhecimento que elaboramos para retê-lo, temos na imagem um elemento influenciador (até mesmo fundamental) no percurso epistemológico. Uma imagem, ou conjunto delas — por si mesma, em seu processo de feitura e em seus diversos métodos de recepção -, marca um modo de percepção que não nos atinge apenas a sensibilidade física ou sentimental. Dentro e a partir dela está uma forma de apreensão do mundo como aponta Chauí. Se o modo como organizamos os fenômenos muda, percebemos também uma virada epistêmica e Chauí deixa isso claro com o caso de Galileu. Depois do telescópio, passamos a ver coisas que não estavam lá. A concepção do ser humano dentro do Universo muda depois que conseguimos ver além do alcance habitual. Uma nova visibilidade é construída. Um novo conhecimento rege o mundo. A imagem é produção de conhecimento.

Essa ligação se estabelece e calcifica no conceito de Forma. Se a maneira de organização do pensamento condiciona nosso conhecimento sobre a imagem (espelho do mundo), uma imagem inserida num debate formal, da produção à recepção, introduz discursos organizados de diferentes fontes epistêmicas. Isso se mostra importante porque deixa a produção cultural aberta para experimentações que problematizam questões tidas como certas e verdadeiras pelo senso comum. O papel da filosofia, afinal.


“A Gaia Ciência”, Jean Luc-Godard, 1969


Como Jean-Luc Godard afirma em A Gaia Ciência, “verdades evidentes pertencem à filosofia burguesa”. Neste filme-ensaio produzido no auge da batalha cultural do fim dos anos 60 e prenúncio para a virada revolucionária do cineasta nos anos 70, Godard põe dois jovens marxistas para discutirem os caminhos possíveis para uma arte que favoreça a luta de classes ao educar o povo contra as representações artísticas e midiáticas que se formaram na burguesia. As verdades evidentes são evidentes por tratarem de discursos do senso comum repetidas insistentemente. A racionalidade científica que justificou coisas como o darwinismo social e o liberalismo econômico é fruto de um progresso tido como teleológico e inevitável. Mas, ao voltarmos um pouco no tempo, encontramos as bases para esse pensamento e ele se torna só mais um. Filosofia socialmente construída como as outras — algo que não a invalida, apenas a coloca em perspectiva.

A virada racional na cultura do Ocidente se dá a partir do Iluminismo, portanto, histórica e geograficamente localizada. A separação cartesiana entre corpo e mente coloca o Homem (assim grafado de propósito) como ser racional que habita um corpo passível de sensibilidade que será subsumida pelo intelecto. O corpo como um meio apenas. Agora que a intelectualidade e o racionalismo são inerentes ao Homem, quem pretensamente não a possui não pode ser considerado ser humano. Aqui, a razão é justificativa para opressões, como a religião foi usada um século antes para promover o colonialismo europeu nas Américas (GROSSFOGUEL).

A visão de mundo que se constrói a partir da supremacia da ciência estabelece uma necessidade de uma causa para um efeito. Afinal, para Kant, o Homem conhece a partir de suas noções de tempo e espaço dentro de si, antes de conhecer o mundo. O tempo é a linearidade por qual nossa sensibilidade é afetada. Uma linha incontornável que assimila um antes e um depois. Apesar de parecer óbvio e verdadeiro, existem epistemes que não se baseiam nessa noção temporal, como é o caso de religiões de matrizes africanas: Exu joga uma pedra hoje e acerta um pássaro ontem.

A linearidade assumida é um traço importante na narratividade. O cinema industrial nascido nos Estados Unidos segue uma linha narrativa que estabelece causas para efeitos que movem a trama. Coincidência ou não, a técnica de montagem que se organiza a partir disso nasce de D.W. Griffith e seu filme O Nascimento de uma Nação, filme racista que conta o lado sulista na Guerra Civil americana e foi um marco cultural importante para o ressurgimento da Klu Klux Klan.


“O Nascimento de uma Nação”, de D.W. Griffith, 1915


Desde o Romantismo, com Shelling e Shlegel, por exemplo, a arte passa a focar-se na forma como parte racional para a concepção da obra e a cultura popular é introduzida com novas maneiras de se entender o mundo e influenciar a arte. A arte moderna (a pós-moderna e contemporânea, por consequência) continua o trabalho estético dos românticos e se joga ao desafio de questionar a própria visibilidade. Esse movimento é criticado por muitos com o argumento de que a arte contemporânea é mais sobre as palavras do que sobre as imagens produzidas. Têm-se a impressão de que qualquer coisa pode ser arte e, portanto, nada é arte.

Jacques Rancière lança luz sobre essa polêmica em seu texto A pintura no texto. Nele, o ensaísta refaz o caminho das artes plásticas a partir do fim da arte figurativa no século XIX, quando quebra-se o estatuto da mímese. Segundo o autor, existiria uma hierarquia entre as artes em que a poesia e as palavras estariam em vantagem em relação ao visível. Uma pintura, desse modo, tinha a função de mimetizar uma narrativa, muitas vezes religiosa ou militar. Quando essa hierarquia termina e todas as artes podem ser sobre si mesmas e suas características, a pintura adquire uma outra visibilidade que não é nem sobre a narrativa que tenta representar o mundo nem sobre o meio pelo qual a pintura se coloca (cores sobre um plano). Mas tal ruptura não é uma separação entre pintura e palavras [a narrativa que contava algo antes], é outro modo de atá-las. A potência das palavras não é mais o modelo que a representação pictural deve ter como norma. É a potência que escava a superfície representativa para fazer aparecer a manifestação da expressividade pictural. Isso quer dizer que esta só está presente na superfície à medida que um olhar escava essa superfície, que as palavras a requalificam, fazendo aparecer outro tema sob o tema representativo(RANCIÈRE, 2003).

Ao contrário do senso comum, a pintura (e a imagem, em consequência) não necessita mais de palavras que a interpretem ou que sintetizem um acontecimento narrativo. A imagens são por si mesmas atadas a uma forma; a palavras que não resumem uma ideia, mas a ideia em si. A partir desse momento, a arte não se preocupa mais em traduzir conceitos de uma expressão artística para outra, mas entender como se organiza a forma de cada uma delas. Ainda Rancière: “O texto crítico, na era estética, não diz mais o que o quadro […] deveria ser. Diz o ele é ou o que o pintor fez.”



Susan Sontag por Henri Cartier-Bresson


Essa visão sobre a imagem no mundo contemporâneo vai ao encontro da filosofia de Susan Sontag. A autora recusa uma interpretação das obras de arte. Para ela, não é o papel de uma obra ser feita para ser resumida num conjunto de temas e discursos como se ela se bastasse como meio. Para Sontag, “a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte”. É importante analisar esta frase. O intelecto a que Sontag se refere não são as formas e palavras inscritas na imagem como apontamos a partir de Rancière. Sontag se refere à decomposição teórica de formas, cores e temas que se pautam numa racionalidade científica atrelada a uma sociedade de consumo. Para que a arte seja mais que seu tema, Sontag recorre à forma. Ela dá o exemplo do cinema, uma arte nova que ainda (e ainda mais na época que o texto foi escrito) busca sua identidade. A montagem da imagem em movimento que constitui o cinema pode se organizar de todas as formas possíveis. É o exemplo de Ingmar Bergman, que para a autora, mesmo filmando sentimentalismos baratos, organiza a imagens de maneira única e especial (SONTAG, 1964). O pensamento a que este texto se refere segue a mesma linha, em que uma forma é uma expressão epistêmica que pode nascer de diversas visões de mundo.


A interpretação adquire aqui dois polos. Um já citado em que a obra é esvaziada para que vejamos o tema que ela expõe, e um segundo em que são analisados os pontos que constituem aquela obra por inteiro, forma e conteúdo, filosofia e política, visível e metafísico. Um exemplo desse tipo de interpretação são os textos de Gilda de Mello e Souza sobre cinema. Em sua análise de Terra em Transe, Mello e Souza estabelece suas condições de visibilidade sobre a obra de Glauber Rocha. A autora compara o filme com o anterior do cineasta, Deus e o Diabo na Terra do Sol, e mostra como os dois filmes partem de lugares diferentes para retratar condições sociais. Por exemplo,

Enquanto Deus e o Diabo terminava num admirável ritmo centrífugo [da terra para o mar]; […] parecia apontar confusamente para uma esperança. Terra em Transe […] começa num centrípeto [do mar de volta ao continente]. […] Como quem reconhece que a esperança havia sido prematura e era preciso testar de novo as premissas, de outra perspectiva (MELLO E SOUZA, 1980).

Mais do que entender o discurso revolucionário e suas aplicações políticas como qualquer outro filme muito diferente poderia fazer, Mello e Souza analisa as condições de possibilidade de um cinema brasileiro. Entre as artistas que se lançaram a esse abismo formal, é importante citar duas: Virginia Woolf e Agnès Varda.


A inglesa Woolf, ensaísta, sabia da importância da problematização das formas vigentes. Segundo a autora, a ficção inglesa da virada para o século XX sofria, debatia-se em círculos viciosos. “É duvidoso que no decurso dos séculos, apesar de termos aprendido muito sobre a produção de máquinas, tenhamos aprendido alguma coisa sobre como fazer literatura” (WOOLF, 2014). Para Woolf, a literatura de seu país fechava os olhos para novas formas estéticas e esquecia das infinitas possibilidades da arte, “[…] que não há limite algum no horizonte, que nada — nenhum ‘método’, nenhuma experiência, nem mesmo a mais extravagante — é proibido, exceto a falsidade e o fingimento” (WOOLF, 2014).

Enquanto Woolf se direcionava às formas que as palavras se colocavam na literatura e aos novos tipos de narratividade que a ficção inglesa teimava em ignorar, Varda fez o mesmo com as imagens cinematográficas. Membro da geração da nouvelle vague e fotógrafa de formação, Varda filmava com o intuito de pesquisar a própria visibilidade borrando fronteiras entre cinema, fotografia, artes plásticas e pensamentos. Isso é bastante visível nos filmes Ulisse, Saudações aos Cubanos, Panteras Negras e Os catadores e Eu, por exemplo.


“Os catadores e Eu”, Agnès Varda, 2000

Em Ulisse, Varda investiga a feitura da própria foto, 20 anos antes, ao lado dos modelos que posaram e da viagem que fazia quando a tirou. No curta, Varda entrevista seu colega, o homem nu da foto na praia, e a criança sentada, que já nem se lembra do dia em que a tirou. A partir disso, a cineasta trabalha com memória e composição. Reflete sobre o ambiente política da época e temos a missão de receber todas essas informações, plásticas e discursivas, para entendermos o caminho da autora.

Em Os Catadores e Eu, Varda monta um dispositivo e uma ética de filmagem que acompanha o filme. A cineasta não tem o interesse de pedir para que um assistente de produção vá buscar catadores para que eles falem de suas condições, para ela, o importante era ir conhecendo essas pessoas pessoalmente, “catando” suas histórias assim como ela “catou” imagens por toda a vida. Como o psicanalista do filme afirma, o ato de catar nos coloca em posição de perceber o Outro e dessa maneira podemos entender que temos um Eu separado do mundo, mas necessariamente ligado. Nesse filme, Varda não se basta numa crítica social, mas põe em questão a própria identidade (dela e de nós mesmos) e o lugar da arte nesse dispositivo Eu-Outro que tem implicações sociais, estéticas e filosóficas.

A imagem, especialmente a partir da modernidade, está inserida numa dialética de forma e conteúdo que separa o tema e o discurso, desierarquizando as expressões artísticas. Mas faz isso apenas para atá-las perpetuamente, em que uma obra de arte não diz mais algo, mas é efetivamente esse algo unido à palavra e ao pensamento.



 

BIBLIOGRAFIA CHAUÍ, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. GROSSFOGUEL, Ramón. (jan./abr. 2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, Brasília, volume 31, número 1, p. 25–49. SONTAG, Susan. Contra a Interpretação. SOUZA, Gilda de Mello e. Terra em Transe. In: Exercícios de leitura / Gilda de Mello e Souza (o baile das quatro artes). São Paulo: Duas Cidades, 1980. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 2002. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. WOOLF, Virginia. Ficção moderna. In: Virginia Woolf, o valor do riso e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

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