Do amor: encenando entre corpos e noites sem dormir
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Infinito Particular, Marisa Monte
Esses dias quebrei um tabu autoimposto: Agora não preciso chorar somente na sala de cinema. Me lembro de três ocasiões em que a sala escura escondeu as lágrimas sobre minha pele também escura e, coincidentemente ou não, as três se deram durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
A primeira vez foi em 2016 com A Cidade Onde Envelheço, filme mineiro da cineasta Marília Rocha. Marília foi um dos nomes finalistas da minha lista quando eu ensaiava sair do armário, achei curioso o suficiente para compartilhar. Naquele ano eu namorava e o amor não era uma questão, era só realidade. Chorei porque achei o filme bonito.
A segunda vez foi com Ilha, de Glenda Nicácio e Ary Rosa. Baianos do Recôncavo, marginais, artesanais. Um filme que explicita um certo ódio pelo cinema como ele é, mas ama o que ele pode ser. Em seu fim, o protagonista abraça a imagem de forma literal e dedica aqueles minutos a quem “escolheu o cinema, mas não foi escolhido por ele”. Esse ódio me é bastante familiar e Ilha influenciou bastante o que viria a ser Anticena, filme apresentado nesse mesmo festival e que dirigi com uma pessoa que um dia amei e hoje não conheço mais.
A terceira vez foi em 13 de dezembro de 2023.
O Dia que te Conheci é um filme de amor como todos os anteriores de André Novais Oliveira também o são. Ela Volta na Quinta nos traz um amor maduro, um amor que se enraizou na construção de uma família depois de décadas de um casamento feliz. Infiel, mas completo no que se propõe. O contrato do casamento pressupõe os direitos e deveres de duas pessoas que juram perante a Igreja, a Justiça e a Receita. A força dessas instituições parece inevitável porque realmente é e calcificam a forma de amar e sobreviver apesar dos sacrifícios exigidos pela vida. Resta a todos nós a vida interior a despeito de nosses parceires.
É em volta da vida interior de seus pais que André Novais fabula o curta Quintal. Dois velhinhos em suas vidas pacatas lado a lado, mesmo que as aventuras vividas no meio desse nada tranquilo envolvam portais interdimensionais. A segurança desse nada sustenta o extraordinário. Encena-se em volta das idas à feira.
Fantasmas, por outro lado, reflete justamente o ordinário. Apesar do título paranormal, o curta representa aquilo que há de mais comum na vida de todes nós: um término mal resolvido em que uma das partes segue com sua vida enquanto o outro não consegue exorcizar o passado. Com uma câmera fixa apontada pela janela para vigiar o trânsito e quem sabe flagrar a ex, o protagonista, na verdade, vigia a si mesmo. Ou melhor, expia sua culpa e seu fracasso através de imagens que capturam não o trânsito, mas sua própria obsessão. Aqui não se encena, aliás não vemos ninguém, mas o aparato técnico organiza a forma do filme e o cinema é o mediador dessa obsessão. Não haveria Fantasmas fora do cinema.
O filme anterior lançado por André Novais talvez seja o mais triste. Temporada nos traz Juliana, brilhantemente interpretada por Grace Passô, como a figura da mulher à deriva depois do abandono. Acompanhamos Juliana ir perdendo as esperanças do reencontro, fechar-se para qualquer mínima possibilidade de nova ferida para, no fim, ensaiar uma atitude perante a própria vida. Me lembra um pouco a Delphine n’O Raio Verde, de Rohmer. Um rompante de ação que não significava nada na natureza do gesto em si, apenas o domínio de Juliana sobre seu próprio corpo, sentidos e vontades. O amor à vida depois que o amor romântico fez a única coisa que consegue fazer: frustrar.
Seja bonito, nonsense ou perturbador, o amor em André Novais move montanhas. Afinal, o que vive dentro de nós não são sentimentos inquilinos, somos nós mesmos e somos todos falhos. Somos todos um pouco perturbadores também. A negação do que não é tão “afetuoso” funciona apenas como mecanismos de controle do que nos forma em favor de uma normatividade que reproduz as mais diversas formas de violência. Que bom então é um filme como O Dia que te Conheci.
Diferente de uma parte dos filmes anteriores, O Dia que te Conheci se afasta um pouco de uma estética naturalista tão presente no cinema brasileiro contemporâneo que, inclusive, já demonstra certo cansaço. Talvez por ter sido uma moda que apelava a uma projeção da realidade brasileira, mas que produzia justamente o contrário. A nova cara do “filme de festival”. Em nome de representar o “Povo Brasileiro”, apostava-se (aposta-se ainda) numa reedição da imagem crua numa tentativa de emular a caricatura do Cinema Novo e parte do Cinema Marginal sem notar que o cenário estético e político do Brasil (e do mundo) é diferente daquele vivido nos anos 60.
O sentimento revolucionário pertence hoje, infelizmente, à extrema-direita. Vimos isso ao vivo no 8 de Janeiro e Trump bate à porta novamente. Nosso cinema, em nome do “Povo”, assumiu a representação sem encenar, ou melhor, acreditando não encenar uma realidade mediada pelos festivais, editais de financiamento, curadorias internacionais e pelo lobby da hegemonia cultural mediada pelas redes.
Esse cinema naturalista intervia menos; incidia sobre a imagem menos pensamento e menos ação até mesmo que Eduardo Coutinho (um documentarista!).
Sendo a arte um objeto com um devir de transcendência, a metafísica de Bergson se faz pertinente. É preciso se relacionar com o objeto a partir de seu interior, ou seja, analisar minuciosamente a superfície não é suficiente.
Soma-se a isso uma pandemia, a iminência de uma guerra e a internet, e o naturalismo começa a parecer mais do que antiquado. Na verdade é inofensivo. Se as IAs ensaiam a concretização da pós-verdade, fabular um futuro fantástico, um passado fantasmagórico ou um presente sublime nos convida à esperança ou ao ódio, mas pelo menos a alguma coisa.
É a encenação como atuação política, afinal não pensar com a estética no bojo das argumentações é achar que a política se faz com a razão pura e simplesmente. Ou que a Arte irá nos salvar apensar por nos iluminar com sua grandeza divina. Ingenuidade em ambos os casos. Não sabemos o que fazer com esses afetos por estarmos doentes.
André Novais elabora seu novo filme a partir, justamente, da autoparódia. O humor esteve sempre em seus filmes como parte formativa da vida, seja em momentos singelos de Temporada ou na fantasia de Quintal. Mas aqui André Novais ri de si mesmo, ri de seu irmão Renato (que incorpora magicamente o protagonista Zeca), ri da própria melancolia e faz disso o tratamento de uma ferida narcísica que normalmente acomete o melancólico.
É absurdo que Zeca vá comer pastel com um desconhecido a várias quadras de distância de onde o ônibus quebrou, mas quando eles atravessam a passarela correndo produz-se uma imagem pura porque dispensável. Narrativamente já sabemos que ele vai chegar atrasado, mas o êxtase da correria nos alimenta, o movimento preenche o plano por si só. Pura porque o movimento dos corpos forma essa imagem preenchida de vida.
Em outro momento é a câmera carrega o movimento dentro de si. Depois que Luisa (novamente Grace Passô) oferece a carona de volta a Zeca, os dois decidem tomar uma cerveja. Zeca e Luisa, Grace e Renato, caminham alguns minutos na noite de BH e basta vermos que eles existem e decidiram existir um ao lado do outro naquela noite. Pode ser visto como capricho formal, mas aqui o plano-sequência não é técnica pois está imbuído de corpo. É material e é transcendente. É encenação.
Do outro lado do Atlântico, no anti-Brasil que é a Escandinávia, veio Folhas de Outono, de Aki Kaurismäki, outro filme que retrata melancólicos se apaixonando.
Em meio à inflação e as notícias da guerra na Ucrânia, Ansa e Holappa vivem suas vidas solitárias pulando de serviço em serviço e sobrevivendo da própria tristeza. Após cruzarem olhares no karaokê, nossos protagonistas decidem tentar se envolver, mas Holappa está mais interessado na bebida. É importante notar o paralelo das drogas em ambos os filmes, pois se Holappa abraça o alcoolismo para se entorpecer, Zeca e Luisa se conectam quando descobrem tomar os mesmos antidepressivos (e descobrem isso numa conversa de bar).
Fica muito clara uma certa tendência de retratar um adoecimento coletivo, seja aqui, seja na Finlândia, enquanto assistimos um momento histórico atrás do outro. Kaurismäki retrata a melancolia contemporânea com apenas dois símbolos que pontuam a sensação geral: a guerra e o mundo do trabalho, pesadelos grandes demais para serem vistos por completo. Assim, tudo parece muito maior do que uma trabalhadora de chão de fábrica e um servente da construção civil conseguiriam resolver.
Kaurismäki apequena Helsinque e a transforma num vilarejo pré-Indústria Cultural. É como se víssemos os camponeses do Bresson de Mouchette, A Grande Testemunha ou Diário de um Pároco de Aldeia ou lêssemos os folhetins do século XIX em que cada personagem assume um arquétipo em favor daquele universo a ser narrado.
Com uma decupagem minuciosa, uma direção de arte que reinterpreta os anos 50 e uma fotografia que ilumina como se iluminasse um palco, Folhas de Outono aposta na encenação porque só a imaginação é capaz de unir dois deprimidos tão azarados quanto Ansa e Holappa.
Nossa tristeza contemporânea é de natureza trágica porque durante a Guerra Fria existia a sensação de um fim apocalíptico, mas palpável, rápido e para todo mundo. Nossa tristeza contemporânea é gestada dia após dia com a impressão de que já vimos esse filme, mas o final é mais sofrido e menos apoteótico. Aliás, esse sentimento de que nos encaminhamos para o fim é um dos motivos que nos faz sofrer.
Numa era tão inteirada da seriedade dos transtornos de saúde mental, o caminho que escolhemos foi o de medicalização desses transtornos. Entre o burnout, o TDAH e os pais narcisistas, nomeamos cada atitude numa lista interminável que explicita todos os traços tóxicos numa tentativa de que eles desapareçam, quando na verdade só se transformam em armadilhas autoimpostas.
Recentemente, vi no TikTok um psicólogo explicando como nossa paixão por outra pessoa é, na verdade, muitas vezes um pico de dopamina tentando compensar o desequilíbrio de neurotransmissores. Aquela pessoa vira um gatilho desse mecanismo. Se esse argumento tem alguma legitimidade científica não importa muito porque me refiro aqui a como estamos organizando nossos discursos e nossa visão sobre o corpo. Ao separamos o todo em infinitas partes categorizáveis, o pão deixa de ser o “pão de cada dia” para se tornar apenas carboidrato. O discurso ocidental primeiro separa o sujeito do objeto para depois desencantar o sujeito E o objeto.
A racionalidade europeia nos desincorpora e é aqui que a encenação de André Novais brilha mais que a de Aki Kaurismäki para mim. Enquanto Ansa e Holappa parecem autômatos numa vida manualizada, Zeca e Luisa são as almas que ocupam e traçam seus caminhos nas encruzilhadas de Belo Horizonte (de novo aquele plano-sequência até o bar). São personagens que desejam, que inventam e que arrancam o tampão do dedo na calçada. São personagens que nos permitem imaginar o depois do feliz para sempre porque conseguimos cria-los dentro de nós.
André Novais fabula sem condescendência. Me lembra O Raio Verde em que Rohmer não se interessa em nos criar identificação com Delphine. Pelo contrário, vemos uma personagem cheia de manias e o sublime se apresenta diante de nossos olhos não por nos vermos nela necessariamente, muito menos porque ela encontra o amor no fim do filme, mas porque, como a Juliana de Temporada, conhecemos alguém de corpo e alma. Delphine não é quem assiste, mas uma amiga que amamos e torcemos muito. É bonito ver ela florescer.
E, apesar de ser proibido ser uma emocionada em tempos de flerte virtual, talvez o mais revolucionário nem seja uma não-monogamia economicamente ingênua e filosoficamente capenga, mas um trabalho de antropofagia com a geração do Romantismo brasileiro (ou qualquer outra) num estilo de colagem e edição. Fazer com os românticos, com Sylvia Plath, com Nora Ephron, com Ross e Rachel o que John Heartfield e os construtivistas russos fizeram com a fotografia em seus tempos de entreguerras. Também vivemos entre guerras.
Por isso tento não me envergonhar mais com meu choro no Cine Brasília assistindo O Dia que te Conheci, nem com os choros em casa que vieram no Natal, nem em admitir que eu sou uma emocionada. Desde então minha melancolia não parece mais o fim do mundo, mas o começo de outro pelo simples fato de cogitar uma paixão. Se ela se confirmou ou não, não é da conta de vocês, apenas me coloco como Delphine ou como as encarnações de Grace Passô, agente do meu desejo. Avistar o raio verde ou cruzar Belo Horizonte vêm menos como destino romântico e mais como presente.
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